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Voucher do IVA, benefício fiscal ou controlo dos contribuintes?

A proposta do Orçamento do Estado para 2021, no âmbito dos impostos sobre o consumo, mais precisamente na área do Imposto sobre o Valor Acrescentado, prevê um programa de apoio e estímulo ao consumo nos setores do alojamento, cultura e restauração, ao qual se denominou "IVAucher”. Estaremos perante mais uma forma de os contribuintes se controlarem uns aos outros? Ou, neste caso em particular, de controlo dos agentes económicos pelos consumidores finais?

O objetivo deste programa é apoiar setores da economia portuguesa fortemente afetados pela pandemia provocada pela doença COVID-19, nomeadamente os setores do alojamento, cultura e da restauração.

Como funcionará o Voucher do IVA?

Este estímulo irá basear-se num mecanismo que permite ao consumidor final acumular o valor correspondente à totalidade do IVA suportado em consumos nos setores identificados durante um trimestre e utilizar esse valor durante o trimestre seguinte em consumos nesses mesmos setores. 

O cálculo, ou melhor, o apuramento do valor correspondente ao IVA suportado pelos consumidores finais será efetuado a partir dos montantes constantes das faturas comunicadas à Autoridade Tributária (AT). Neste ponto, nada se esclarece, quando o comerciante faltar à sua obrigação de comunicar as faturas emitidas, presumindo-se que sejam os consumidores finais a comunicar as faturas utilizando a tecnologia de QR Code que entrará em vigor a 1 de janeiro de 2021.

A utilização do valor acumulado será efetuada por desconto imediato nos consumos, o qual assume natureza de comparticipação e opera mediante a compensação interbancária, através das entidades responsáveis pelo processamento dos pagamentos eletrónicos que assegurem os serviços técnicos do sistema de compensação interbancária (SICOI) do Banco de Portugal, no âmbito do processamento de transações com cartões bancários. 

Para quem não está tão familiarizado com o SICOI, trata-se de um sistema de pagamentos de retalho gerido pelo Banco de Portugal. Neste sistema são processados e compensados os pagamentos de retalho efetuados através de cheques, efeitos comerciais, débitos diretos, transferências a crédito, transferências imediatas e cartões bancários. 

Por este motivo, pensa-se que este apoio apenas poderá funcionar através da utilização de cartões bancários.  
 
Na prática, o consumidor final que consumiu serviços de restauração, alojamento ou culturais num determinado trimestre irá pagar menos na aquisição dos mesmos serviços no trimestre seguinte. 

Voucher do IVA vs Regime de Proteção de Dados Pessoais  


Ao aderir a este benefício fiscal, os consumidores finais vão consentir livremente, de modo informado e explícito o tratamento e comunicação de dados necessários à sua operacionalização.

A AT, por seu lado, não poderá aceder, direta ou indiretamente, a quaisquer dados de natureza bancária no âmbito do programa "IVAucher”, com exceção do processamento estritamente necessário à apresentação ao consumidor dos movimentos e saldos relativos à utilização do benefício nos canais da AT, conquanto este processamento assegure que aqueles dados não são armazenados pela AT nem ficam acessíveis.

Ao mesmo tempo, as entidades intervenientes e responsáveis pelo processamento dos pagamentos eletrónicos não podem aceder, direta ou indiretamente, a qualquer informação fiscal da AT relativa aos consumidores ou aos comerciantes, com exceção do resultado do apuramento do benefício para efeitos da sua utilização.
 
Este processo terá de ser totalmente transparente para o consumidor final, sob pena de a desconfiança se instalar e o propósito ou os propósitos deste benefício fiscal ficar pelo papel, sem qualquer expressão prática. 

Voucher do IVA e o IRS

 
Atualmente, estas despesas, quando assumidas pelos consumidores finais, fazem parte das deduções à coleta do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (IRS) no âmbito das deduções das despesas gerais familiares, associadas à exigência da fatura. Ora, este programa estabelece, logo à partida, que o montante que for utilizado no apuramento do valor da comparticipação para efeitos do Voucher do IVA não concorrerá para efeitos de deduções à coleta.

O controlo, por parte do contribuinte, dos montantes das despesas incluídas no âmbito da dedução à coleta e os montantes utilizados no âmbito deste benefício será mais difícil para o contribuinte, mas esperemos que as ferramentas disponibilizadas pela AT sejam melhoradas para este efeito.

Voucher do IVA: periodicidade trimestral


Este benefício fiscal irá basear-se num mecanismo que permite ao consumidor final acumular o valor correspondente à totalidade do IVA suportado em consumos nos setores identificados durante um trimestre e utilizar esse valor durante o trimestre seguinte em consumos nesses mesmos setores. Ora, surge então a questão: porque é que devemos esperar pelo fim do trimestre para utilizar este benefício fiscal?

A resposta é que a Autoridade Tributária não tenha de devolver o valor do IVA, através do IVA Voucher, sem que antes os agentes económicos não tenham entregue o valor do IVA liquidado nas faturas. Aqui devemos lembrar que existem dois regimes do IVA em Portugal: regime mensal e regime trimestral. No primeiro caso, a entrega da declaração periódica do IVA e consequentemente o pagamento do IVA deve ocorrer até ao dia 10 do 2º mês seguinte. No segundo caso, a entrega da declaração periódica do IVA e consequente pagamento deve ocorrer até ao dia 15 do 2º mês seguinte ao trimestre civil.
 
Desta forma, a probabilidade de o Estado devolver IVA sem o ter recebido dos agentes económicos será diminuta. Esta é a vertente que mais favorece o Estado. Do lado do contribuinte, que pretende aceder a este benefício fiscal, este prazo poderá ser considerado como uma desvantagem. Isto porque, na prática, o valor do IVA relativo à aquisição destes serviços apenas será devolvido três meses depois.   

Voucher do IVA e a Tecnologia 


O projeto e-Fatura, implementado pelo Estado Português em 2013 e com sucesso evidente para as partes envolvidas, obriga a que todas as empresas comuniquem as faturas e outros documentos fiscalmente relevantes. Para confirmar este facto, bastará verificar o aumento sustentado da comunicação de faturas ao longo dos anos e, também por causa disso, o aumento da receita do IVA.

Este projeto tem sido continuamente melhorado e, em determinados casos, aumentado o seu âmbito inicial. Atualmente, através do e-Fatura, os contribuintes enquadrados como consumidores finais, conseguem definir o setor de atividade de realização da aquisição, tais como cabeleireiros, restauração e alojamento, reparação de automóveis, reparação de motociclos e atividades veterinárias. 

Aliás, se o contribuinte "consumidor final” assumir, ao mesmo tempo, uma atividade profissional, o sistema permite definir, adicionalmente, se a despesa foi efetuada no âmbito pessoal ou profissional, estabelecendo, dessa forma, a distinção das despesas por setor de atividade e âmbito.  

Segundo palavras do Sr. Secretário de Estado das Finanças, António Mendonça Mendes, este benefício fiscal será baseado, essencialmente, no processo do e-Fatura, de forma a haver, desde logo, um controlo das faturas sujeitas a cálculo do valor do IVA que fará parte do Voucher do IVA. 

Percebemos facilmente a opção técnica por limitar o apuramento da comparticipação resultante do IVA suportado nas aquisições efetuadas, para este efeito, apenas nas faturas comunicadas no âmbito da obrigatoriedade de comunicação de faturas.

No entanto, se é verdade que na proposta se escreve que caberá ao Governo definir o âmbito e as condições específicas deste programa, questões se levantam quanto à interoperabilidade tecnológica entre as várias entidades envolvidas. E é neste ponto que o Estado deve estar a colocar todo o seu enfoque, por se tratar efetivamente do ponto fulcral de todo o projeto Voucher do IVA.  

Voucher do IVA sistema de controlo 

 
Se recuarmos um pouco atrás no tempo, percebemos que a AT identificou quatro setores de risco fiscal: reparação de automóveis e motociclos, restauração, alojamento e cabeleireiros. Com base nesta identificação, estabeleceu um benefício fiscal específico para os consumidores finais que solicitem a inscrição do número de identificação fiscal na fatura referente à prestação do serviço.
 
Este benefício fiscal consistia na atribuição de um valor correspondente a 15% do valor do IVA suportado nas aquisições suportadas nestes setores. Claro está que a premissa é a identificação do número de identificação fiscal do consumidor final na respetiva fatura.

Estão a perceber as similitudes? 

 
O Estado atribui um benefício fiscal, agora pela totalidade do IVA suportado em determinadas despesas. Mas é certo que, ao fazê-lo, protege também a necessidade que o Estado tem de os contribuintes se controlarem uns aos outros. Neste caso em particular, do controlo dos agentes económicos pelos consumidores finais.

Concluindo, 

A motivação desta medida é facilmente compreendida pela condição atual de pandemia que afeta diretamente os setores da restauração, alojamento e cultura. Se é certo que compreendemos a motivação desta medida, também é verdade que, como se diz na rua, com uma cajadada se mata dois coelhos - o Estado atribui um benefício fiscal ,mas também vê reforçada a sua capacidade de controlo através do mecanismo -  contribuintes controlam contribuintes.

No entanto, e assumindo a sua pertinência, percebemos que o facto de a mesma depender de condicionantes como um vasto leque de entidades, questões como proteção de dados pessoais, periodicidade elevada e não acumulação com deduções à coleta do IRS, poderá afastar os destinatários desta medida. Por isso, torna-se essencial o cabal esclarecimento da sua regulamentação e, acima de tudo, que a tecnologia adotada seja transparente do ponto de vista da utilização para o consumidor final, mas também para o operador económico que nesta fase está reticente a todo o tipo de investimento.   
  


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